O roteiro não muda. A cada carnaval tragédias se repetem em razão do abuso dos foliões, que historicamente se aproveitam da data para exagerar. O que se vê no período de folia são pessoas agindo de forma intencionalmente descontrolada, como se não houvesse regras e o mundo fosse acabar depois da festa. "O povo incorpora nessas festas a ordem ao avesso, e os governantes são permissivos, já que se trata de um tipo de 'válvula de escape' para tensões sociais. Nesse dia o inverso vale: homem se veste de mulher, pobre pode virar rei etc. Até hoje a marca do Carnaval é a de que tudo aquilo que inverta a ordem social vigente – nos limites da segurança – seja permitido. É uma necessidade do ser humano de subverter o controle social, de protestar contra os deveres do dia a dia. O que todos, de certa forma, guardam no íntimo têm nesse dia permissão para ser mostrado", analisa a professora e doutora em psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Liliana Liviano Wahba, que buscou a origem da comemoração para explicar os excessos cometidos nesse período.
Segundo ela, a festa do Carnaval surgiu na Antiguidade – representando rituais agrícolas de fertilidade e de renovação da terra – marcada por entusiasmo e danças. Depois, na Grécia, havia ritos para o deus Dionísio – ou Baco – do vinho e do teatro. "Aí o cristianismo medieval incorporou tais festividades antigas, datando-as antes da Quaresma. Rege-se pelo ano lunar e um dos significados prováveis etimologicamente seria ‘adeus à carne’ ou ‘carne vale’. Ou seja, antes da reflexão e da penitência, extravasam-se as necessidades ditas carnais, em oposição às consideradas espirituais", ensina Wahba.
Mas no Brasil esses exageros foram crescendo a cada carnaval e hoje a violência é outra de suas marcas. Homicídios, embriaguez, brigas, acidentes de carro, divórcios, gravidez indesejada e contágio de doenças sexualmente transmissíveis se propagam pelo País no período da festa. "É como se o ato de transgressão – deboche, orgia, bebedeira, grossura, sexualidade exposta – tivesse uma aceitação da própria ordem social que os reprime. Nesses dias, há uma permissão para o lado proibido ocorrer normalmente", diz Liliana.
Mas essa suposta liberdade causa transtornos que nem sempre são reversíveis, como no caso da proliferação de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). "Com certeza o que ocorre nesse período, com frequência maior a cada ano, é que aumenta o risco de contaminação das DSTs. Na prática, isso é visível e a contaminação aumenta por vários motivos. O principal deles é a mistura de festa com bebidas alcoólicas, o que deixa as pessoas mais relaxadas e sem tomar cuidado", diz o médico de família e diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Oscarino Barreto. Segundo ele, há outras preocupações além do HIV. Ele conta que percebe nitidamente uma prevalência de doenças como sífilis, hepatite B, cancro mole e HPV depois do feriado prolongado. "No carnaval, o risco fica evidente em razão das relações passageiras. Como hoje existe facilidade para viajar, as doenças transmissíveis se disseminam muito mais rapidamente também. Notamos uma maior ocorrência dessas doenças em gestantes pós-carnaval. O medo em relação a essas doenças é que na maioria das vezes elas são assintomáticas: não dão febre nem dor. Elas são doenças silenciosas, e a pessoa pode ser transmissora sem saber", diz o especialista.
E há também um aumento da gravidez não planejada. "E como! Há um aumento de gestantes no pós-carnaval, além de os plantões após o carnaval registrarem ainda um crescimento significativo de agravos de hipertensão e diabetes", crava Barreto. O risco da gravidez indesejada também pode ser medido pelas vendas de autotestes de gravidez. Segundo a empresa líder nesse segmento, há um aumento de 15% das vendas no período e nos dias seguintes ao carnaval. "Não há explicação única, é um conjunto de fatores: as pessoas bebem mais, a festa estimula muito a libido e fantasias deixam os foliões mais excitados. Esses fatores levam a ter mais exposição, mulheres ficam mais à vontade, além do aumento de consumo de álcool e outras drogas. Nos lugares em que a festa de carnaval é tradicional, é comum acabarem até os estoques de cerveja", observa Barreto.
A psicóloga Liliana Wahba diz que a bebida desinibe, libera os controles, facilita a extravasão. Mas a especialista faz um alerta: "Se a bebida mudar radicalmente o comportamento, se, por exemplo, a pessoa se permitir abusar do outro ou ferir alguém, trata-se de outra índole de fenômeno. A violência que estava escondida, reprimida, é liberada com a desculpa do carnaval. Mas isso não é a festa em si’’.
Segundo ela, "o carnaval é faz de conta, é jogo, tem uma magia de poder atuar nas fantasias de cada um, de colorir o mundo além das obrigações".
Exemplos clássicos dos distúrbios provocados pelo álcool são flagrados nos principais carnavais do Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, centenas de foliões são presos por urinar nas ruas nas festas dos blocos de rua. Já no Recife (PE) é hábito entre grupos de meninos cercar uma garota e só deixá-la sair depois que todos ganharem um beijo. A prática, que pode ser interpretada como estupro, está até na cartilha feita pela prefeitura local como uma atitude proibida. Em Salvador (BA), onde índices de alcoolismo e de violência pipocam e até um drink que leva remédio em sua composição faz sucesso, salta aos olhos a quantidade de brigas entre os foliões, além do assédio ostensivo às mulheres, embalado sempre por letras de músicas que incentivam a loucura e o sexo.
No atual carnaval baiano, além dos pagodões pornográficos e do tradicional ritmo do arrocha, a lista das letras de axé music já tem mais um hit de incentivo à folia previsto para ser sucesso e que leva em seu refrão a frase "beijar na boca até cansar".
Mais uma vez, foliões iludidos vão ultrapassar os limites com a desculpa de querer extravasar a alegria, enquanto várias pessoas morrem por causa da festa que transforma muitos em bobos da corte.
A origem
Desde os primórdios da celebração do carnaval, adotada pela Igreja Católica por volta do ano 590, o excesso dita a festa, chamada de "carnaval" após adaptação da expressão "carnis valles" – sendo que "carnis" em latim significa carne e "valles", prazeres. Atualmente, o tal "prazer da carne", que um dia simbolizou o exagero celebrado pelos 40 dias de privação de carne antes da Semana Santa dos católicos, parece ter outra conotação.